Leitores de chocadeira


Por Manuel Filho
Olá!

Vim aqui conversar com você sobre literatura infantil e juvenil.

Sim, conversar. Acho que uma conversa pode ser um excelente ponto de partida para este assunto. Não irei colocar aqui qualquer opinião, juízo de valor. Apenas jogarei papo fora, apresentarei possíveis hipóteses. Nada como uma boa hipótese a ser contestada, comprovada, desafiada, jogada fora.
Faz tempo que prefiro mil vezes a flexibilidade de uma hipótese à rigidez de uma opinião.

Bem, e como começar?

Quem sabe, quase pelo início.

Quando eu frequentava a biblioteca pública da minha cidade, a Monteiro Lobato em São Bernardo do Campo (SP), havia um setor para as crianças, exclusivo. Era um lugar com estantes baixas, espaço para desenhar e, no canto, um biombo recortado ao centro, utilizado durante a apresentação de peças de teatro com fantoches. Uma porta de vidro separava esse ambiente dos demais. 

Ali ficávamos nós, as crianças “regulares”. Existia um pequeno grupo que visitava a biblioteca diariamente. Eu fui um frequentador assíduo por cerca de três anos ao ponto de minha mãe precisar ir lá me buscar quando eu me demorava muito. 

Havia as bibliotecárias/mediadoras de leitura que eram sempre as mesmas e se desdobravam para nos estimular, praticar atividades e sugerir leituras.

Foi por meio dessas sugestões que os primeiros autores foram entrando em minha vida. Tornaram-se marcantes Francisco Marins e Lewis Carroll. Conheci, em razão da proximidade daquele acervo, diversos outros escritores como Lucília Junqueira de Almeida Prado, Odette de Barros Mott e toda a coleção Vaga-Lume.

Entretanto, como a maioria das crianças, eu tinha a minha atenção despertada pelos lugares “proibidos”. Ninguém podia subir no primeiro andar, só os funcionários. Eu devo ter tido acesso ao local umas duas ou três vezes, mas não tenho grandes recordações, assim, provavelmente não fui muito bem-vindo.

Eu me recordo de três senhoras que, ao surgirem no salão infantil ou em outras dependências, um certo silêncio e respeito naturalmente se impunham. Elas circulavam, falavam pouco conosco e logo retornavam ao andar superior.

Eram as “senhoras bem vestidas”, como ficaram gravadas em meu imaginário de criança pobre, de poucos recursos. Eu não tinha a noção exata, mas hoje sei que elas exerciam a parte administrativa, a direção e zelavam para que tudo ficasse dentro dos “conformes”.

Ficou para mim, permanentemente, a imagem das “senhoras bem-vestidas” e educadas que definiriam o que a gente podia ou não podia fazer. E eu vejo “essas senhoras” até os dias de hoje em múltiplos lugares.

Por exemplo, nas grandes feiras literárias.

Cada vez mais eu percebo como as literaturas infantil e juvenil são gentilmente excluídas de vários aspectos da programação dessas. Embora sejam um dos principais segmentos econômicos do mercado, existem ainda feiras e encontros literários que não organizam uma única mesa na qual possa ser discutida a situação desses gêneros. Em alguns deles, permite-se que existam espaços “exclusivos” onde é possível ter a sensação de que aquele é o “cantinho das crianças”.

Eu, como escritor para a infância, sei que ali, no “cantinho das crianças”, acontece muita coisa importante. Os pequenos leitores têm acesso a alguns dos melhores livros produzidos no mundo, brasileiros. Uma rápida passagem de olhos pelos nomes dos autores de várias obras me lembra que muitos deles, ano a ano, e por décadas, caminham por escolas, por encontros literários em muitas cidades, por bibliotecas. Nesses encontros atendem a crianças que os veem encantados por saber que, quem diria, aquele autor ainda está vivo.

Esses autores não apenas estão vivos como seguem estimulando leitores e fazendo com que vários sigam lendo livros na vida adulta. Muitos leitores se perdem pelo caminho e há muito pouco que esteja sendo feito para “recuperá-los”.

Assim, quando me deparo em mais uma feira onde não se levam em conta os escritores para a infância eu fico pensando que “as senhoras bem vestidas” que fizeram a curadoria de tal evento são “leitores de chocadeira”. Parece que nunca leram um livro infantil, jamais se encantaram com uma fábula, um conto de fadas. Tudo isso agora faz parte de um passado remoto. Bom mesmo é falar sobre a “literatura de qualidade”, seja lá o que isso possa significar.

Ao ser ignorada como tema relevante de mesas literárias, persistem, porém, apostas a fim de estimular a leitura por crianças: são clubes, distribuição gratuita de livros, profissionais que contam histórias...

Essa história é muito longa, não cabe apenas nesta nossa conversa, porém, o que eu acho considerável ressaltar é o fato de que a literatura infantojuvenil deva ser cada vez mais estimulada, pois ela é a porta de entrada principal para que novas pessoas possam seguir lendo por toda a vida. Não adianta ficar sentado lá na ponta esperando que os “leitores sobreviventes” nos alcancem e queiram saber da nossa “imprescindível literatura, a que realmente importa”.

Penso que livros precisam ser espalhados. Não há como pretender determinar qual “livro de qualidade” deverá ser disponibilizado aos leitores. Desde que existam bibliotecas, salas de leitura, pequenas caixas e alguns mediadores, por exemplo, cada um irá encontrar o livro pelo qual irá se apaixonar. Definir regras para o que pode ser lido não me parece nada produtivo atualmente.

Ah, sim, e encerrando esta conversa, a biblioteca de minha infância passou por uma grande reforma e todos os espaços, inclusive o primeiro andar, são agora acessíveis para todos que tencionem abrir um livro, seja ele qual for.

Manuel Filho, nascido em 06.03.1968 em São Bernardo dManuel Filho nascido em 06.03.1968 em São Bernardo do Campo (SP). Escritor agraciado com o prêmio Jabuti 2008 e finalista do mesmo prêmio em 2016. Possui mais de 50 livros publicados por editoras como Melhoramentos, Besouro Box, Paulus, Ática, Saraiva, Editora do Brasil, Panda Books, RHJ, entre outras. Em parceria com Maurício de Sousa e Ziraldo escreveu o livro MMMMM (Editora Melhoramentos), que uniu pela primeira vez as turmas da Mônica e do Menino Maluquinho. Seus livros já participaram de importantes feiras internacionais como as de Frankfurt, Bologna e Guadalajara. Participou de eventos internacionais de literatura como Printemps Littéraire Brésilien 2019 (Braga e Porto) e Canalzinho 2016 (Londres e Paris). Foi finalista, em 2013, do prêmio Açorianos com A menina que perdeu o trem (Besouro Box) e já foi contemplado pelo PROAC-SP em duas oportunidades. Também já recebeu o selo de Acervo Básico, da FNLIJ, e seus livros foram adquiridos por importantes projetos como PNBE, PNLD e Minha Biblioteca. Já foi o patrono da Feira do Livro de Carlos Barbosa (RS). Viaja por todo o Brasil participando de feiras e encontros literários: Feira de Porto Alegre, Fliaraxá, FELISB SBC e Bienal do Livro de São Paulo, entre outros. Também é ator e cantor. Já gravou três CDs: Tempo (2007), Raízes (2010), Cantando de Brincadeira (2015). Integra os projetos literários do SESI-SP desde 2011. Como ator, atuou em grandes espetáculos teatrais como Os Lusíadas, O Mágico de Oz, e A Luta Secreta de Maria da Encarnação, último espetáculo escrito por Gianfrancesco Guarnieri. Escreveu para revistas, televisão e programas de rádio.